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Linguagem e educação linguística

Linguagem e educação linguística

 

por Eugenio Coseriu

O título “Educação Linguística” não é novo nem cedo conseguiu impor-se tal como hoje se procura entender. Começou por merecer certa preocupação entre os linguistas, passando depois a ser considerado, entre pedagogos e professores, como um domínio puramente técnico didático. Hoje constitui um promissor campo de pesquisa e de resultados para a linguística e a educação, pondo claro, como bem disse o professor italiano Raffaele Simone (SIMONE, Raffaele, L’educazione linguística, 1979, p.8) que a linguagem não é apenas uma “matéria” escolar entre as outras, mas um dos fatores decisivos do desenvolvimento integral do indivíduo e, seguramente, do cidadão.

Lá fora, os resultados desses estudos empreendidos por conhecidos representantes da pesquisa linguística e educacional já repercutiram nos programas e currículos das universidades e das escolas de ensino médio.

Entre nós, onde tem sido tênue o fluxo de influência científica dessas pesquisas, explodiu uma reação ao que se convencionou chamar pejorativamente tradicionalismo, e a mudança – que se fazia necessária em vários pontos – acabou por produzir resultados desastrosos.

É oportuno lembrar que, de todos os componentes do currículo das escolas de ensino médio, foram os textos destinados ao ensino de língua portuguesa os que mais sofreram com a onda novidadeira, introduzindo, além da doutrina discutível, figuras e desenhos coloridos tão extemporâneos e desajustados, que aviltaram o tradicionalismo e insultaram a dignidade por que sempre se pautaram os textos escolares entre nós. a comparação entre um livro para ensino da língua portuguesa e outro para ensino de matemática, da história ou da geografia, quase nos leva a retirar o primeiro da linha do que se costuma chamar compêndio didático, para incluí-lo no rol dos artigos e coloridos almanaques distribuídos ao início de cada ano, como os tornados célebres almanaques do Capivarol, esquecido produto farmacêutico. Muito lucrariam os alunos se esses produtos de uma pretendida revolução educacional guardasses a dignidade e a soma de boas informações que caracterizaram o Almanaque Garnier, por exemplo.

Já que estamos fazendo uma crítica a certas inovações perturbadoras e pouco producentes que muitos compêndios, à luz de uma didática formal ou informal, pretenderam introduzir no ensino da língua portuguesa, na década de 60, cabe um comentário acerca do privilegiamento da língua oral, espontânea, em relação à língua escrita.

Deveu-se o fenômeno, cremos nós, a duas ordens de fatores: uma de natureza linguística, outra de natureza política. As ciências da linguagem vieram patentear que as línguas históricas são fenômenos eminentemente orais, e que o código escrito outra coisa não senão um equivalente visível do código oral, que, de falado e ouvido, passa a ser escrito e lido. Assim sendo, a linguística norte-americana, especialmente ela, pôde desenvolver rígidos e precisos modelos de descrições de línguas indígenas que jamais conheceram, de modo sistemático, a transposição escrita do discurso falado.

Essa possibilidade de uma metodologia com rigor científico aplicado a línguas ágrafas parece que estimulou em muitos estudiosos bloomfieldianos certa desatenção ao código escrito, considerando-o até campo que extrapolava a investigação linguística. Tal atitude chegou a provocar a crítica de Gleason, autor de um dos melhores manuais de linguística descritiva de orientação norte-americana.

Essa visão distorcida da realidade incentivou outro passo adiante dado por alguns linguistas, também em geral norte-americanos: a crítica à natureza normativa da gramática tradicional, com a defesa de que se deve deixar a língua livre de qualquer imposição. Um desses linguistas, Robert Hall, em 1950, chegou a intitular ou a aceitar esse título proposto pela editora a um livro seu de divulgação linguística: Leave your language alone (Deixe a sua língua em paz), título que foi alterado na sua 2ª edição.

Portanto, viera pela porta da própria linguística e se instalaram nas salas de aula de Língua Portuguesa esse privilegiamento do código oral em relação ao escrito e certa desatenção a normas estabelecidas pela tradição e conservadas ou recomendadas no uso do código escrito padrão. Por isso, assistiu-se entre nós, na década de 60, a um insurgimento contra o ensino da gramática em sala de aula; em vez de dotá-la de recursos e medidas que a tornassem um instrumento operativo e de maior resistência às críticas que justamente lhe eram endereçadas desde há séculos, resolveram muitos professores e até sistemas estaduais de ensino aboli-la, sem que trouxessem, à sala de aula, nenhum outro sucedâneo  que, apesar das falhas, pudesse sustentar-se pelo espaço curto de uma única geração.

A bem da verdade, cabe-nos dizer que já se assiste a uma reação a esse estado de coisas, e os livros didáticos mais recentes voltam a insistir no padrão culto da linguagem, quer nas recomendações da gramática normativa, quer através da inclusão e seleção de textos, literários ou não, que refletem esse padrão.

Ainda insistindo nessa ordem de ideias, é interessante lembrar a indulgência e até certo elogio com que Fernand de Saussure comenta a tarefa da gramática tradicional, de inspiração grega. Logo na introdução do Cours de linguistiqué Générale, ao referir-se a polissemia do termo gramática; diz que essa gramática tradicional está fundada na lógica e desprovida de toda a visão científica e desinteressada da própria língua, portanto o que se pretende é unicamente dar regras para distinguir as formas corretas das incorretas; é uma disciplina normativa, muito distante da observação pura, o seu ponto de vista é necessariamente restrito (SAUSSURE, Ferdinand de, Cours de linguistiqué Générale, Paris. Payot, 1949, p. 13).

A outra ordem de fatores procede da política, ou, para não desmerecer uma atividade nobre, de certas teses populistas e demagógicas, especialmente no que se concerne è educação linguística de adultos, segundo as quais devem os “oprimidos” ficar com sua própria língua e não aceitar a da classe dominante.

Ora, a educação linguística põe em relevo a necessidade de que deve ser respeitado o saber linguístico prévio de cada um, garantindo-lhe o curso na intercomunicação social, mas também não lhe furta o direito de ampliar, enriquecer e variar esse patrimônio inicial. As normas da classe dita “opressora” e “dominante” não serão nem melhores nem piores do que as usadas na língua coloquial. Como bem lembrou o professor Raffaele Simone (SIMONE, Raffaele, op. Cit. P. 61), “enquanto a posição populista perpetua a segregação linguística das classes subalternas, a educação linguística deverá ajudar a sua libertação”.

A tese populista do ponto de vista democrático é tão falha quanto a tese que combate, pois ambas insistem num velho erro da antiga educação linguística, já que ambas são de natureza “monolíngue”, isto é, só privilegiam uma variedade de código verbal, ou a modalidade dita “culta” (da classe dita “dominante” ou “opressora”), ou a modalidade coloquial (ou da classe dita “oprimida”).

 

*Texto extraído do livro Estudo da Língua Portuguesa: textos de apoio, de Evanildo Bechara, páginas 345/348

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